2023 foi um ano desafiante em que as descidas do leite representaram uma perda de 30 milhões de euros | Agricultor 2000


Jorge Rita, Presidente da Associação Agrícola de São Miguel, em jeito de balanço aborda as temáticas atuais da lavoura açoriana e faz um ponto da situação do setor agrícola e leiteiro. Em destaque estão os novos desafios que o setor enfrenta, a sua preocupação com o merecido reconhecimento dos lacticínios dos Açores, o futuro da produção de leite na região, a transição do setor do leite para a carne e as dificuldades dos jovens agricultores, nos dias de hoje. Nesta entrevista poderá ler a sua análise do ano de 2023 e o que espera para 2024, que arranca com preocupações e incertezas.

- Hoje defende-se novas políticas e a entrada de novas tecnologias na agricultura. Preconiza-se mais bem-estar animal. Defende-se um aumento do rendimento do agricultor pela baixa do custo de produção. A indústria pede para se tirar o foco do preço do leite à produção e olhar-se para o binómio mais produção com menos custo. Estes são novos desafios do sector?

Jorge Rita - A pergunta é feita baseada no conceito de algumas pessoas ligadas ao sector agrícola. Todos nós sabemos que há aqui situações de grande importância.  Sou de opinião que se devem reduzir áreas que estão no domínio da agro-pecuária para se ter mais florestas. Sou o maior defensor deste princípio. As pastagens que estão em zonas altas já não têm, com as alterações climáticas que temos hoje, condições para termos os animais lá. E esta é também uma questão de bem-estar animal. Isto irá reduzir, substancialmente, algumas das áreas da pecuária. E agora não vejo que, com menos área forrageira, com menos alimentos importados, como é que podemos aumentar a produção. Isso nem sequer o milagre das rosas ou o milagre da multiplicação dos pães. 

Eu penso que tem de haver algum sentido de responsabilidade na Região em relação a este tipo de discurso porque se me disserem assim: Nós podemos e devemos ter as vacas com menos importações de alimentos, até posso perceber. Se calhar, menos rações, menos adubos nas pastagens…podemos perceber esta teoria. Mas esta teoria leva a quê? Leva a que as indústrias que recebem 100 milhões de litros de leite, vão passar a receber 50 a 60 milhões de litros de leite. Isto porque as vacas não vão produzir da mesma forma se as pastagens não forem deviamente adubadas e se as vacas não forem devidamente alimentadas em termos suplementares. Esta é a questão de muita gente que, às vezes, fala de uma forma e esquece-se da realidade.

Para nós, produtores, fazemos, normalmente, aquilo que as indústrias pedem. Temos o caso da indústria Bel que tem uma exigência enorme em termos de documentação, mas também paga e valoriza - não devidamente no meu ponto de vista. Mas eles têm aqui algo que para nós é do melhor que se fez até hoje no país em matéria de leite. Estou referenciando a Bel derivado ao conceito das 'Vacas Felizes'. O que é lamentável, no meu ponto de vista, é que a Bel não tenha conseguido valorizar muito mais este produto no mercado.  Já existe uma discriminação positiva nos pagamentos, mas aquele leite, com o selo que foi criado e as exigências que são impostas aos agricultores para o produzir - desde a conversa do bem-estar animal, desde todo o trabalho que existe e até hoje já se faz a monitorização em termos de proteção integrada. Nós estamos a ser massacrados em termos de documentos. E agora digo: é verdade que este trabalho está a ser feito, mas também é verdade que este trabalho não é devidamente remunerado.

Quando se quer falar de qualquer produto com muita sustentabilidade, as pessoas quando tiverem produtos que têm garantida a sustentabilidade integrada, têm que saber que o produto que vai para o mercado tem que ser bem pago à produção, neste caso, do leite. Para que, depois, quem tenha que produzir com estas obrigações e com estas exigências, possa cumprir com as regras. Porque, senão, a maior parte da lavoura não tem condições financeiras com as obrigações que são exigidas porque não é ressarcida do preço devido do leite pelo trabalho que desenvolve.

Eu sei que a indústria não gosta de falar no preço do leite e, então, entende que os lavradores é que devem fazer mais milagres do que aqueles que já fazem, que é reduzir nos custos de produção. Estamos plenamente de acordo. Agora, nós desafiamos as indústrias e eles até já deviam ter feito isso, em associação ou individualmente, ter as suas explorações para demonstrar como é que se deve fazer bem feito. Não é dizer aos outros o que devem fazer. Só dizemos sempre à fábrica é que, com o nosso produto de excelência, se crie produtos diferenciados com valor acrescentado, sublinho que estas oscilações e descidas do preço do leite em 2023 representam uma perda de 30 milhões de euros para o setor.

Não nos podemos esquecer do relatório que surgiu no âmbito da PARCA, que reúne a produção, a indústria, a distribuição, os consumidores, e vários organismos do governo a nível nacional e regional. O estudo vem confirmar o que temos referido ao longo do tempo, que existe uma constante degradação do preço de leite pago aos produtores, e isso tem uma consequência: enquanto a produção regista prejuízos, a indústria e a distribuição obtêm lucros. Confirma-se assim, que o parente pobre da fileira do leite é sempre a produção e esta é uma constatação que não podemos, nem vamos aceitar. Este princípio tem de ser alterado, porque se isto continuar a ocorrer, só existe um resultado que é a delapidação dum setor económico de grande importância na região, como é o caso do leite. Aguardamos que o resultado deste estudo, proveniente duma entidade independente, seja capaz de alertar a indústria e a distribuição, para a necessidade de ser encontrada uma justa repartição de lucros na fileira do leite.  Quanto às políticas do sector e dos custos de produção, obviamente que o grande dilema de qualquer produtor é perceber como é que tem de corrigir as suas despesas. Por isso é que existe um trabalho no campo das organizações, para que os produtores tenham o emparelhamento dos animais, o bem-estar animal assegurado, e todo o acompanhamento técnico em nutrição vegetal e animal, por isso, fazemos análises dos milhos forrageiros e análises dos solos, mas não podemos controlar as condições climatéricas. Em relação à fileira do leite, é importante que haja um pacto de regime entre a produção, a indústria, a distribuição e o governo, para que o rendimento dos produtores de leite esteja assegurado e assim poderem viver com dignidade, segurança e confiança.

 - A manteiga dos Açores foi registada com registo DOP. Qual a sua importância?

J. R. - Este é o reconhecimento pela União Europeia da qualidade existente nos lacticínios dos Açores, e surge dum trabalho que tem sido feito no âmbito do CALL (Centro Açoriano de Leite e Lacticínios), onde está o governo, a produção e a indústria. Este processo da manteiga DOP tem como objetivo alavancar os produtos lácteos regionais, pelo que, estamos satisfeitos com este reconhecimento e que seja, o início da valorização da manteiga, não só na região, como além-fronteiras, porque reúne características muito próprias e diferenciadoras das restantes existentes no mercado.

Este é o caminho certo e que permite afirmar os Açores nos mercados pelo que, aguardamos que a indústria tenha capacidade de aproveitar esta situação e consiga junto da distribuição, e principalmente, junto dos consumidores ter a capacidade de demonstrar a excelência deste produto.

- A produção de leite tem descido nos últimos anos. Este ano, a tendência mantem-se?

J. R. - Segue a mesma tendência, atendendo a existir alguma desmotivação, que se baseia muito, na inconstância do preço de leite praticado junto dos produtores, onde prevalecem os baixos valores, têm existido um conjunto de medidas como a redução voluntária da produção de leite e a reconversão de leite para carne, que têm originado uma menor produção de leite nos últimos 2 anos. Na presente campanha, essa tendência irá continuar, em menor escala, mas desde o ano de 2020 e até 2022, existiu uma diminuição de cerca de 50 milhões de litros de leite.

Não podemos produzir por produzir, já que os custos de produção têm subido duma forma transversal nos últimos anos, devido à guerra da Ucrânia e que se iniciou, no período da pandemia. As elevadas taxas de inflação e de juros têm sido um problema acrescido. Este ano já existiram alguns ajustes nalguns dos fatores de produção, mas por exemplo o gasóleo agrícola subiu cerca de 20 cêntimos por litro durante o período das colheitas dos milhos, sabendo que, entretanto, já houveram descidas. Por outro lado, o preço pago aos produtores de leite não tem sido constante, e se praticaram preços interessantes no fim de 2022 e início de 2023, esse foi um período curto e infelizmente, nunca acompanhou não só as subidas que se verificaram no continente e na Europa, mas também, a sua duração, não foi suficiente para colmatar os prejuízos acumulados no setor. A tendência da indústria de ser proativa nas descidas de leite, e de ser reativa nas subidas, continua a ser um handicap ao fortalecimento da fileira. Sem rendimento, não há produtores de leite, por isso, a tendência é para que exista menos produção, mas sem nunca descurar a qualidade, já que esta é cada vez melhor e vai sempre de encontro às pretensões da indústria. A lavoura responde aos estímulos que permitam melhorar cada vez mais o leite entregue. Resta à indústria potenciar esta qualidade junto da distribuição, com o apoio do governo regional, nomeadamente, através de campanhas de marketing de produtos lácteos duma forma consistente.  

- A CERCA tem desenvolvido um trabalho interessante no âmbito da carne…

J. R. - Em relação à carne, a nível do CERCA e da Federação, temos feito um trabalho acompanhado por várias pessoas, a trabalhar nesta área desde Santa Maria, Terceira, Graciosa e algumas das outras ilhas também. Estamos a fazer o acompanhamento devido, de uma forma integrada e articulada do que queremos em relação à carne para a Região. Temos um centro de estratégia, mas também temos uma estratégia para a carne. E São Miguel vai ter um papel muito importante no aumento e crescimento de produção de carne nos Açores. E até já começaram a ser criadas infraestruturas na Região - e no caso concreto em São Miguel - a demonstrar que o paradigma da carne em São Miguel, que nunca foi considerado um sector de grande importância na economia da ilha, começa a pensar-se de uma forma totalmente diferente.

Sempre se aproveitou a carne ao nível das vacas e do que as vacas produziam. Mas, hoje, estamos muito focados naquilo que é a carne de animais adaptados aos Açores e adaptados à ilha de São Miguel, quer a nível dos seus cruzamentos, quer a nível das raças puras. E São Miguel começa a ter aqui alguma dimensão. Não é por acaso que a Bensaúde e os seus associados fizeram um investimento no centro de processamento de carne. Não é por acaso que começa a haver maiores organizações e a intervenção de muitos dos produtores que foram para a reconversão agregados connosco para crescermos e termos alguma dimensão na área da carne.  E é por isso que digo que na carne, tal como aconteceu no leite, tem de haver mais formação, mais especialização transversal desde a produção até à transformação e comercialização. E este é um trabalho que o CERCA está a fazer ao nível da desmancha, quer no tratamento e aproveitamento das peças. Há todo um trabalho que tem de ser feito.

- O Roteiro da neutralidade Carbónica 2022 defende uma grande redução de CO2 na Agricultura. Aponta como objetivo a existência de 79 mil vacas em 2050, sem reduções no gado de carne e na recria. É possível este objetivo?

J. R. - Sinceramente eu por acaso assisti à apresentação do roteiro e fiquei muito satisfeito por várias razões. No entanto, incomoda-me muito, quando não há possibilidade de debate nem intervenções sobre o tema. Segundo o roteiro, até 2030 já devemos ter uma redução brutal da emissão de metano (CH4) na área da agricultura. E mais satisfeito estou porque o roteiro foi feito no ano da pandemia em que o tráfego marítimo e aéreo era reduzido.

Na prática, o que vai acontecer é que o sector da agricultura, sem fazer nada, os resultados da emissão de carbono nos Açores vão ser reduzidos em comparação com os outros os setores porque há uma retoma da economia, e com isso, mais transportes marítimos e aéreos e, portanto, mais emissões de carbono. E onde é que estão os créditos de carbono que a agricultura promove? Que estão ao nível da floresta, da nossa pastagem, da nossa biodiversidade que tem a ver com a agricultura. Se formos contabilizar estes créditos, penso que o balanço final será positivo. Independentemente do número de vacas que vamos ter nos próximos anos, o sector que melhor se irá adaptar na Região (depois precisamos é de dados certos), tenho a certeza que é a Agricultura que estará, nos próximos tempos, no melhor patamar possível em relação à matéria das emissões de carbono. Além disso, em 2002 existe um documento que apresentei a Bruxelas onde está escrito que os Açores nunca deviam ter mais de 85 mil vacas. Agora, dizem que até 2050 devemos ter 79 mil vacas. São 6 mil vacas de diferença. E eu até sou defensor, e isso é sabido, que devemos ter menos vacas e melhores vacas. Há mais de 20 de anos disse que nunca iríamos ultrapassar uma quota de produção na ordem dos 700 milhões e chegamos aos 650. Estes documentos são bíblicos.

- Que balanço faz a 2023? Foi a pergunta que fizemos a Jorge Rita, que durante todo o ano esteve atento aos fenómenos mais marcantes na nossa Região:

J. R. - Classifico 2023 como um ano de muita complexidade, considero que existiram várias situações anormais que juntas provocaram instabilidade no setor agrícola, entre elas as consequências sociais, económicas e politicas resultantes da pandemia, as guerras entre Rússia e Ucrânia e Israel com o Hamas,  portanto há todo um conflito latente de guerras a inflacionar tudo o que está ao nível dos nossos custos de produção, desde a energia aos combustíveis, tudo subiu de uma forma brutal e não conseguem regularizar esta situação. Um outro ponto negativo, é a falta de apoios para se lidar com o aumento dos custos de produção na agricultura, com a agravante do aumento acentuado das taxas de juro e com as implicações que tem em toda a economia.

Todas estas situações foram muito complicadas este ano para o setor.  Não posso deixar de mencionar as baixas do preço do leite muito acentuadas, na ordem dos 10 cêntimos em média, aumentando o fosso e o diferencial entre o continente, sem esquecer a falta de mão-de-obra que também é uma situação muito preocupante.

2023 até arrancou bem em certas áreas com o preço do leite a ser pago a preços interessantes, mas rapidamente começou a baixar.

Além disso, as condições climatéricas também não têm sido as melhores, tem chovido praticamente todos os dias, o que tem implicações em toda a agricultura.

Apesar disso, este ano, na fruta e nas hortícolas, as coisas felizmente estão equilibradas, mas também existiram condições climatéricas adversas, como a tempestade Óscar, que prejudicaram uma série de produções que ainda não foram ressarcidas pela Secretaria Regional da Agricultura.

- O que podemos esperar neste novo ano no setor agrícola açoriano? Quais as perspetivas para 2024?

J. R. - Espero que 2024 seja naturalmente um ano diferente e melhor do que o anterior, porém existem muitas incertezas para este novo ano, vislumbro um cenário com pouco otimismo devido às consequências das guerras, da inflação e das taxas de juro.

2024 é fundamental para o arranque dos investimentos, temos o quadro comunitário de apoio e o PRR, mas há cenários de incerteza que não são abonatórios para a nossa economia. Apesar disso, no setor da Agricultura, espero que haja reflexão por parte da indústria e da distribuição que são quem fica com a maior fatia de todo o negócio da agricultura e que não se esqueçam de valorizar quem está na produção.

A minha expectativa é que quer o leite, quer a carne possam aumentar o preço para termos algum rendimento com alguma dignidade e espero que em 2024 possamos contar com apoios ao aumento das taxas de juro e para os jovens agricultores para minimizar a brutalidade de segurança social e impostos que pagam.

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