Não há solidariedade da Indústria para a Produção | Agricultor 2000


Presidente da Federação Agrícola dos Açores e da Associação Agrícola de São Miguel aborda os principais problemas que afetam o setor devido à pandemia do covid-19, apontando as soluções que devem ser adotadas pelos diferentes agentes. Fala ainda da baixa de preço de leite aos produtores.

- Em Fevereiro dizia que as indústrias de lacticínios estavam a levar os lavradores para o abismo por não aumentarem o preço do leite à produção. E, então, estava longe de imaginar o atual cenário em que a indústria pretende baixar ainda mais o preço do leite...

Jorge Rita - Sim. Quando fiz esta afirmação, os produtores de leite já atravessavam sérias dificuldades.

Ainda não se falava na pandemia do covid-19 e já havia uma crise na agricultura açoriana. Tínhamos e continuamos a ter o leite mais barato de toda a Europa e querem que o preço fique ainda mais barato.

E todos sabemos que não podemos ter os custos de produção mais baratos da Europa por causa do custo dos transportes. Embora tenhamos algumas vantagens comparativas no modo de produção que temos.

Sem dúvida que como é pago o leite nos Açores está a levar os produtores a caminho do abismo, por melhor que seja a gestão da exploração com redução de custos de produção, que é sempre possível, com os preços praticados, dificilmente temos rendimento.

A situação fica pior com o problema atual e já com o aproveitamento de algumas indústrias: a primeira que anunciou uma descida no preço do leite, o caso da Prolacto que, há pouco tempo, dizia que estava numa excelente situação e aliciou uma série de produtores passando a mensagem de que tinha capacidade para receber o seu leite.

E todos sabemos que existem, atualmente, pequenas queijarias em situações muito mais difíceis por estarem ligadas à restauração, às escolas, e a lojas de vendas de produtos regionais. Quase tudo isto fechou.

Há o argumento de que os preços do leite em pó e da manteiga baixaram no mercado, mas quando os mesmos subiram muito no mercado, não vimos resultados práticos no preço do leite pago ao produtor.

A verdade é que, quando é para aumentar o preço do leite, o que dizem os industriais de lacticínios é que existe um contrato e só dentro de seis meses é que se faz um novo. Quando descem, unilateralmente, o preço do leite, é o contrato que foi renovado.

São dois pesos e duas medidas. Isto tem acontecido ao longo dos anos e volta a acontecer agora.

Num momento destes, que é um momento de crise, em que toda a gente fala de solidariedade, - nem todos são solidários e quem sofre as dificuldades da estratégia errada dos industriais de lacticínios, das suas ineficiências, de não venderem bem os seus produtos lácteos, nunca são eles. O reflexo é sempre para o produtor de leite.

Pode haver menos procura em alguns produtos como o leite em pó e a manteiga, mas há indicadores de que aumentou o consumo de queijo. Então, porque é que as indústrias não aguardam mais dois a três meses para tomarem as decisões. Se todas as semanas tivemos reuniões para monitorizar tudo o que estava a acontecer na Europa, no país e na Região. E, depois, o que se faz é limitar a produção (o que é sempre mais fácil).

Há indústrias que, neste momento, não precisam baixar o preço do leite. Bem pelo contrário, temos dados que provam que há um aumento substancial no consumo dos queijos e leite UHT. E estas são duas vantagens comparativas que nos levam a afirmar que as indústrias que produzem queijo e leite de consumo não podem, sequer, pensar em baixar o preço do leite à produção.

Estes são os dados que todos temos, quer ao nível da Lactogal, quer ao nível da Bel. E existem outras indústrias da Região a que está a acontecer o mesmo no mercado nacional. Estes industriais, que estão a vender mais, não podem baixar o preço do leite.

O que é lamentável, neste momento, é a grande pro-atividade de indústrias que ainda há menos de um a dois meses estavam a dizer que estavam bem; que já tinham os seus contratos fechados e precisavam de leite. Como é que, de um momento para o outro, se romperam os contratos?

E se fosse ao contrário, como é que era? E, depois, vamos ter outras indústrias que estão a vender muito bem no mercado nacional, que é o nosso mercado de referência.

É um facto que a situação é dramática para todos, para as famílias e para as empresas. Mas também é dramática para os produtores de leite que viviam uma crise, e agora são esmagados com nova crise em cima da que já existia.

Todos os sectores de atividade económica da Região vinham de uma situação muito favorável, menos no sector leiteiro. Nós já tínhamos muitas dificuldades. E por isso é que dizia que os industriais de lacticínios estavam a levar os produtores de leite ao abismo.

Os nossos industriais têm sempre o mesmo comportamento na Região: para baixar o preço, são sempre os primeiros; para subir o preço, são sempre os últimos e muitas vezes não sobem.

Não há razão para a baixa do preço de leite devido à pandemia do covid-19.

- Em sua opinião, as indústrias deviam assumir os impactos da atual crise no consumo?

J. R. - As indústrias têm a obrigação, até moral, de mostrar solidariedade com todos e, sobretudo, para quem os fornece a matéria-prima e se houver alimentos mais baratos para toda a gente, o sacrifício é, novamente, exclusivo dos produtores.

As indústrias reduziram os seus prazos de pagamento á banca. Portanto, este é um sinal muito positivo e demonstrativo de que a situação tem sido muito favorável para os industriais.

Pelo contrário, nós, produtores, tínhamos a média de pagamentos na banca a dez anos e, dadas as dificuldades, passamos todos para 20 anos. Ou seja, um produtor que tenha 60 anos, vai pagar as dívidas quando tiver 80 anos. Vai deixar isto para os filhos e, em muitas situações, para os netos.

É também por isso que as indústrias de lacticínios deviam, neste momento, (que é o que estão a fazer as outras industriais a nível nacional) ir à banca e negociar com a banca, aproveitando os juros excecionais, para se fortalecerem financeira e economicamente e ajudarem os produtores.

Mas a primeira medida não é esta. Nem se quer se esgota esta hipótese. Nem sequer se pode pensar que as indústrias têm que ir à banca. Os produtores é que têm que reduzir os seus custos de produção, têm que se endividar mais na banca.

As linhas de crédito decididas pelos governos para minimizar os efeitos negativos da atual situação não resolvem a situação porque todas elas adiam o problema.

- A própria comissão europeia anunciou recentemente medidas de intervenção no mercado como a Federação pretendia?

J. R. - Sem dúvida, embora não saibamos a forma como esta medida se vai aplicar, o principio é correto e percebemos mais uma vez, que a indústria não quer aguentar um pouco e compreender como é que o mercado se vai comportar a curto e médio prazo. Infelizmente é esta a postura que tem perante os produtores.

Acredito cada vez mais neste setor de atividade, mas lamento não termos parceiros que permitam garantir um desenvolvimento sustentável.

Neste aspeto, seria importante a Ministra da Agricultura, conseguir reunir à mesma mesa os representantes da produção, da indústria e da distribuição a nível nacional e regional para não se baixar o preço do leite aos produtores. É lamentável verificar que se continua a fazer promoções no setor do leite. Todas as indústrias precisam de definir uma estratégia nacional para garantir o equilíbrio deste setor, em conjunto com a distribuição, que não pode continuar a delapidar os preços, com promoções constantes. Há que evitar esta situação que deve ser constantemente fiscalizada pelas autoridades competentes.

- Como é que a agricultura está a viver a crise do coronavírus?

J. R. - Estamos a viver uma situação atípica, que ninguém esperava. Aproveito para enviar uma saudação especial a todos os profissionais da saúde, que estão na linha frente, conjuntamente com as pessoas que estão a trabalhar para ajudar a resolver os problemas causados por esta pandemia.

O setor agrícola, no atual contexto, é um dos poucos que é obrigado a trabalhar. E no caso da produção de leite, este não pode parar porque as vacas têm de ser ordenhadas e alimentadas diariamente, e o trabalho necessário ao funcionamento das explorações tem de continuar, para que o abastecimento alimentar seja regular e capaz de satisfazer as necessidades da sociedade.

O agricultor não pode parar para que o seu rendimento seja garantido, assegurando sempre, as condições essenciais de bem-estar animal e de segurança alimentar.

Foram criados vários planos de contingência nas indústrias de lacticínios, tal como na Associação Agrícola de São Miguel e na Cooperativa União Agrícola, em que preparáramos também, equipas de apoio para ajudar a tratar dos animais dos nossos associados, porque não estamos livres de ter os trabalhadores de uma exploração em isolamento.

Os cercos sanitários aos concelhos de São Miguel provocaram algumas dificuldades, mas as autoridades já perceberam que os agricultores tinham de se deslocar para as explorações agrícolas para trabalhar diariamente, mesmo que seja em concelhos diferentes. Neste momento, apesar de estarmos a trabalhar, o setor da produção de leite está a perder rendimento todos os dias, mas é um trabalho que precisa de ser feito.

Os agricultores têm demonstrado uma grande atitude cívica e convém que as pessoas não se esquecem do papel fundamental e indispensável da agricultura na nossa sociedade, porque produz alimentos para a população.

Apesar da importância que registamos no funcionamento da comunidade também somos afetados por esta crise, que é transversal a todos os setores. Todas as pessoas referem que isto é um tsunami, mas ainda não sabemos a sua dimensão e duração.

- Quais foram as primeiras consequências negativas para o setor agrícola e que medidas foram apresentadas para minimizar os danos?

J. R. - Existia um grande desenvolvimento do setor do turismo, na Europa, que também beneficiava a Região. As vendas para a distribuição, através do canal Horeca, desapareceram com o encerramento das empresas ligadas a esses setores, e o que pensámos que seria um excelente negócio, em pouco tempo, transformou-se numa tragédia económica e social.

Os setores do leite e carne, devido à sua dimensão, estão a ser os mais afetados. Também não posso esquecer outros, como o ananás, o vinho e outras produções do setor hortoflorifrutícola, que estavam a registar um crescimento elevado, mas que vão sofrer gravemente com esta crise.

No caso da carne de vaca, estamos a sentir algumas dificuldades, já que os compradores tradicionais vendiam para o Continente e Espanha, que tem atualmente, alguns constrangimentos no seu mercado.

Vamos procurar agora saber quais são as tendências dos consumidores, durante esta crise, mas já todos percebemos que a comunidade está a perceber a importância do setor agrícola.

Agora queremos que a situação melhore para todos, porque podemos viver uma situação dramática se não existirem líderes mundiais com coragem, determinação e arrojo.

Percebemos que outros setores também precisam de ajudas, mas não se pode deixar cair a agricultura. Os políticos regionais, nacionais e europeus devem olhar para o setor agrícola como um setor vital da nossa economia, que contribui para a fixação das pessoas nos meios rurais, garante alimentos para a população. Deve ser encarado como um setor estratégico para a economia da Região. Se não tivemos políticos que consigam ter esta visão vamos ter mais dificuldades para o futuro.

- Que medidas sugere que sejam implementadas na Região?

J. R. - Neste momento o que tem sido anunciado para a agricultura a nível nacional e regional ainda é insuficiente. Considero que devido à crise, o Governo da República deveria ter isentado o pagamento da Segurança Social, durante seis meses ou mais, e a suspensão do pagamento por conta. Não queremos o adiamento dos pagamentos, porque isso significa adiar o problema para a frente.

Desafiamos os políticos a ajudar a agricultura a manter-se forte, e para continuarmos a ajudar a economia da Região Autónoma dos Açores, os agricultores precisam de liquidez. A liquidez faz-se através da injeção de capital nas empresas e empresários ligados à agricultura porque só assim, é que teremos um setor estável, que é essencial para produzir bens transacionáveis, que servem para alimentar as pessoas na Região e ainda tem capacidade de exportação, com todas as implicações que tem na balança comercial.

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, pensa desta forma e já se deslocou a explorações agrícolas no continente.

Neste momento, existem muitos alimentos disponíveis, mas se esta pandemia continuar durante mais algum tempo vão existir muitos países ou regiões que ficam sem capacidade de continuar a produzir, por falta de mão de obra, devido às restrições da quarentena implementada.

A Região deveria efetuar o pagamento de todos os apoios aos produtores e às organizações o mais rápido possível. Já apresentamos, por várias vezes, outras propostas ao secretário regional da Agricultura, como a diminuição nos preços de eletricidade e água, novo safiagri (como aconteceu no passado), transportes marítimos, supressão das taxas de abate, redução no preço do gasóleo agrícola e acabar com os rateios no POSEI. Neste caso e devido aos níveis de produção, existem rateios de ajudas comunitárias de 5 a 18 por cento. Isto são cortes muito elevados em todos os setores e o Governo Regional, com a poupança do orçamento da agricultura para este ano - onde o secretário regional sempre disse que era um grande orçamento para o setor - poderia colocar cerca de seis milhões e resolver o problema dos rateios porque os agricultores tinham expectativa de receber o valor x por animal e por hectare e depois são confrontados com valores inferiores, para além disso falta pagar o apoio regional dos adubos de 2017. Isto seria uma forma de capitalizar o setor no imediato, porque em junho são pagas as restantes ajudas a todas as produções. Desta forma conseguia apoiar todos os setores da agricultura regional.

O Governo Regional tem o poder para fazer isto. Se não fizer esta medida é porque não quer ajudar a agricultura. Até podemos dizer onde está disponível a verba do orçamento da agricultura para estas medidas.

Com o cancelamento das feiras e eventos na região, está disponível cerca de um milhão de euros. Este ano não houve problemas com a falta de chuva, porque quando existiram problemas com a seca o governo deu 2,5 milhões para a compra de alimentos, embora os agricultores tenham suportado o restante custo, estimado em cerca de 10 milhões de euros.

Com estas duas medidas já existem 3,5 milhões de euros. No passado o Governo Regional já deu um apoio de 3,25 milhões de euros às vacas leiteiras. Esta é uma situação fácil de resolver que garante um apoio transversal para todo o setor agrícola.

Estas medidas seriam essenciais para que o setor agrícola suporte favoravelmente o primeiro impacto da pandemia do covid-19.

Não vou aceitar que o Governo Regional diga que não tem dinheiro para a agricultura, porque é necessário para a Saúde. Não se pode matar um setor vital. É preciso existir um equilíbrio, porque a agricultura é solidária, mas não é responsável pela situação que assola os outros setores de atividade.

A agricultura é um setor importante na nossa economia, com o seu trajeto construído ao longo de vários anos, por isso, precisamos de medidas à altura para resolver os problemas dos agricultores.

O Governo Regional não pode fazer uma gestão baseada no seu orçamento. Vai ser preciso endividar-se para ajudar. Isto também vai acontecer com as famílias, empresários e os agricultores que se vão endividar para ultrapassar esta crise. O aumento da dívida tem de ser partilhado por todos.

A banca deve ter uma atitude proativa, chamando os seus clientes no setor agrícola, para verificar as situações onde podem ser aplicadas moratórias. Isto pode ser importante para se continuar a aproveitar as verbas disponíveis do quadro comunitário de apoio e garantir a dinâmica no setor agrícola.

- A União Europeia deverá criar alguma medida específica para apoiar a agricultura dos Açores?

J. R. - A União Europeia vive um problema da falta de liderança. Essa situação agravou-se com a saída do Reino Unido. Verificamos que não existem entendimentos, por falta de liderança. O projeto da União Europeia vai cair, será apenas uma questão de tempo, porque cada um está a gerir os seus problemas internos.

Até este momento as prioridades da União Europeia estavam relacionadas com a imigração, segurança e ambiente. Agora com o vírus a prioridade é a saúde, o emprego e a economia. Não pode haver emprego sem investimento na economia.

No entanto, da União Europeia, o setor agrícola aguarda maior flexibilização e simplificação dos programas comunitários, nomeadamente, ao nível das candidaturas e controlo de campo e a antecipação das ajudas aos agricultores até 15 de agosto, com níveis de percentagem superiores aos usualmente aplicados e medidas de intervenção nos mercados mais arrojadas.

- A Federação Agrícola dos Açores faz parte de uma plataforma de parceiros sociais que pediu medidas determinadas para combater esta crise. Considera que a Região deve promover uma injeção de capital a fundo perdido ou criar outras medidas de apoio para as empresas?

J. R. - O Governo não pode injetar dinheiro numa empresa sem contrapartidas. O dinheiro colocado numa empresa deve ser feito com o compromisso de se manter os postos de trabalho.

A forma mais digna e rentável para a economia é ajudar as empresas a manterem os seus trabalhadores. Não queremos depois o governo a pagar subsídios de desemprego ou rendimentos sociais de inserção.

Não acredito que a nossa sociedade goste de estar em casa a receber dinheiro sem trabalhar. Queremos é que o governo canalize o dinheiro para as empresas para apoiar a economia. A recuperação vai ser lenta, mas este caminho precisa de ser efetuado com apoio de todos.

Será preciso equilíbrio e bom senso em todas as decisões.

- Neste momento será importante a população optar por comprar produtos regionais ou nacionais?

J. R. - Estamos a viver uma das situações mais difíceis da nossa vida. Ninguém sabe como vai estar amanhã, porque estas mudanças foram demasiado rápidas. Todos devemos ser solidários, neste momento, mas a agricultura não para. Faço um apelo para se consumir os nossos produtos e a população deve alimentar quem a alimenta. Isso é uma forma de ajudar a nossa economia de forma transversal.

A união e compreensão de todos será fundamental para ultrapassar esta grave crise.

- Devido à pandemia do covido-19, foi encerrado o restaurante e foram cancelados alguns eventos...

J. R. - É verdade. Infelizmente tivemos de tomar a decisão de encerrar o restaurante ainda numa fase inicial das consequências da pandemia por uma questão de saúde pública. Foram também cancelados alguns eventos como assembleias gerais ou alguns cursos de formação que estavam agendados. Igualmente, foi cancelado o dia nacional de agricultura e também a Feira Açores que este ano se realizava em São Miguel e que incluía também o concurso nacional da raça Holstein Frísia, que serviria de montra dos nossos animais não só a nível nacional mas também com repercussões a nível internacional, mas atendendo a tudo o que se está a passar, não havia condições para a realização destes eventos, já que antes de mais, é preciso defender a saúde pública.