Fábrica de Rações Santana
A Nutrição ao Serviço da Lavoura
Este foi o mote para a reunião de produtores, organizada pela Associação Agrícola e pela Zoetis no passado mês de fevereiro. A casa estava cheia, o tema despertou o interesse nos produtores de leite de S. Miguel! E não é para menos. De facto o vitelo recém-nascido é o renovar da exploração a cada dia. É uma verdadeira fonte de oportunidades, as fêmeas são as futuras vacas produtoras de leite e os machos têm, actualmente, elevada procura e, consequentemente, um valor de mercado mais elevado que no passado recente. Mas não há oportunidade que não acarrete desafios e os vitelos são disto bom exemplo.
O início de vida da espécie bovina não é fácil, estes animais nascem totalmente desprovidos de defesas pois a placenta desta espécie não permite a passagem dos anticorpos (responsáveis pela defesa dos animais contra agentes de doença) da mãe para o feto, durante a gestação. Posto isto, a imunidade do vitelo depende, de forma crítica, do maneio e da consistência de procedimentos nos primeiros dias de vida, com especial enfoque nas primeiras horas. Não obstante, o período seco da mãe e o modo como o parto decorre assumem também um especial impacto na eficácia de aquisição dessa imunidade (capacidade de resistir à infecção).
Vacas sujeitas a stress crónico, má nutrição e doenças durante a gestação (e sobretudo no período seco) tendem a parir vitelos mais fracos e com menor capacidade de ingestão do colostro e de absorção dos anticorpos (defesas) do mesmo, o que tem consequências a curto prazo (maior susceptibilidade aos agentes de diarreia e doença respiratória e menor ganho médio diário) e na produção futura (atrasos na entrada à reprodução e menores produções de leite). Impacto semelhante têm os partos difíceis (distócias) que resultam em vitelos menos viáveis e, portanto, também com comprometimento dessa capacidade de ingestão/absorção. O momento do parto exige, por este motivo, grande ponderação e capacidade de gestão de ansiedade da parte de quem dá assistência à parturiente pois, se por um lado, sabemos que partos demasiado prolongados podem diminuir a viabilidade do recém-nascido, por outro, partos ajudados (distócicos) indevida ou precocemente acarretam sérias consequências para a vaca (infecções uterinas, rupturas, lesões neuromusculares, retenção de placenta, doenças metabólicas do pós-parto, …) e para o vitelo (lesões traumáticas, acidose, …). A bibliografia actual indica que devemos ajudar menos de 10% das vacas e menos de 20% das novilhas a parir, mas é certo que uma boa supervisão dos partos e um correcto conhecimento das suas fases são críticos para aumentar a viabilidade dos bezerros e garantir a saúde das mães.
Superado este desafio, imediatamente após o nascimento, o vitelo enfrenta um segundo obstáculo: a sobrevivência nas primeiras horas de vida. Para superá-lo, deve ser imediatamente retirado do ambiente contaminado onde nasceu, deve ser seco (pela mãe ou por ação humana, quando as mães não manifestam interesse pela cria), aquecido (colocado em ambiente térmico favorável e alimentado), o cordão umbilical desinfectado e deve ser-lhe administrado o colostro o mais rapidamente possível.
A inexistência de transferência de imunidade durante a gestação (devido ao tipo de placenta desta espécie), coloca no encolostramento a função de garantir a capacidade de resistência do recém-nascido aos agentes patogénicos a que está sujeito. O maneio do colostro constitui, assim, um factor absolutamente importante para a rentabilidade a saúde da vitela de reposição e, a longo prazo, para a rentabilidade da futura vaca e, portanto, para o futuro da exploração. Esta primeira secreção mamária, para além de fonte de defesas, é também fonte de calor (os vitelos não conseguem regular a temperatura corporal, dependendo da temperatura externa e do alimento), promotor de crescimento (apresentando uma composição completa em vitaminas, minerais, além de alto teor em proteínas, gordura e outros nutrientes) e laxante natural, ajudando a limpar o mecónio (primeiras fezes). O sucesso do encolostramento depende dos seguintes factores:
- quantidade de colostro administrada - recomenda-se a administração de 4L na primeira refeição, o que pode ser facilmente conseguido com a administração via sonda esofágica, cuja aplicação deve ser treinada.
- qualidade do colostro - o teor em IgG deve ser superior a 50 g de IgG/L (o que deve ser verificado através de um colostrómetro ou refractómetro); e o teor em microorganismos o mínimo possível (o que se consegue com uma boa higienização do úbere antes da 1ª ordenha, do equipamento de ordenha e dos baldes/tetinas, com uma rápida administração (menos de 1h) após a ordenha e com uma eficaz conservação).
- tempo decorrido entre o nascimento e a 1ª refeição - o menor possível, uma vez que a capacidade de absorção dos anticorpos vai diminuindo com o passar das horas, sendo máxima até às 4 horas de vida e sofrendo um rápido decréscimo a partir das 6. Às 24h essa capacidade de absorção é inexistente, pelo que a 1ª refeição quando administrada demasiado tarde servirá apenas de alimento e não de fonte de defesas.
Para além da transferência de imunidade via colostro, , devem considerar-se, com os veterinários assistentes, a pertinência das estratégias de vacinação destinadas aos recém-nascidos.
A vacinação das mães na fase final da gestação contra agente de diarreia, sempre que estes sejam relevantes, constitui uma prática a considerar numa parte das explorações e que, para ter sucesso, depende absolutamente do bom maneio do encolostramento.
Os animais de explorações com problemas de doença respiratória associados aos vírus sincicial (BRSV), parainfluenza (PI3) e da rinotraqueíte infeciosa bovina (IBR) no aleitamento podem ser imunizados activamente, com recurso à vacinação. Esta medida deve, idealmente, recorrer a vacinas com a possibilidade de administração por via intranasal a fim de minimizar a interferência dos anticorpos transferidos pela mãe (via colostro) e, em simultâneo, induzir uma imunidade local e, como tal, uma protecção mais rápida e eficaz frente a esses agentes.
Em suma, a principal estratégia para superação dos desafios do vitelo recém-nascido é assumir o controlo de todos os passos. Contudo, incorremos noutro grande desafio, o da gestão da exploração. Como disse Edwards Deming, conceituado estatístico americano (já falecido), "não se controla o que não se mede (…) e não há sucesso no que não se gere", pelo que cada um, na sua exploração, deverá conhecer os seus indicadores produtivos (taxas de mortalidade, taxas de morbilidade (doença), idade à 1ª IA, idade ao 1º parto, produção de leite por lactação, indicadores reprodutivos, entre outros) e a eficácia do encolostramento que pratica. Este conhecimento consegue-se com uma boa base de registos, actualizada e de fácil compreensão. A eficácia na transferência de imunidade passiva (encolostramento) pode ser avaliada através da determinação das proteínas séricas totais, numa amostragem de vitelos entre o 1º e o 7º dia de vida.
O esforço e investimento no melhoramento genético só é recompensado com um maneio correcto desde a recria, o que nem sempre é fácil, pois, de facto, o vitelo é uma verdadeira fonte de desafios, desde o ventre materno à puberdade, mas não há desafio que, quando superado, não confira satisfação e não há nada que deixe um produtor de leite mais satisfeito do que ter os seus animais saudáveis, produtivos e rentáveis.
Nota: a autora, por decisão própria, não escreve segundo o último acordo ortográfico.
Marisa Bernardino,
médica veterinária Zoetis Portugal - Serviços Técnicos de Ruminantes
marisa.bernardino@zoetis.com