A estratégia da fileira do leite tem de ser repensada | Agricultor 2000


O Presidente da Associação Agrícola de São Miguel aborda as medidas que o novo governo regional deve tomar. Faz um balanço das consequências provocadas pelo covid-19 na região e na agricultura.

Destaca o novo quadro plurianual e o plano de recuperação e resiliência para os Açores. Aborda a importância da agricultura, nomeadamente a fileira do leite, onde o rendimento dos produtores continua a ser muito baixo.

- Em termos gerais, quais as medidas que o novo Governo dos Açores deve tomar de imediato?

Jorge Rita - Estamos a atravessar um período difícil e tudo indica que irá se agravar nos próximos meses, já que a pandemia do covid-19 está aí, e até existir uma vacina que seja capaz de dar confiança e segurança á população, as consequências serão imprevisíveis.

O novo governo deve ter esta situação em atenção e para que o desemprego não atinja números alarmantes, terá de implementar medidas conjunturais e estruturais que protegem a economia regional. Só com empresas e cooperativas que sejam capazes de suportar os tempos difíceis é que os Açores sairão rapidamente da crise que está instalada.

O governo deve auscultar os parceiros sociais sobre a realidade existente, para que possam ser tomadas medidas que permitam às atividades económicas sobreviverem a esta fase negra.

No imediato, deve o governo continuar com o lay off, adaptando-o e enquadrando-o na presente realidade, melhorar as condições das moratórias em vigor, antecipar os pagamentos no programa de manutenção do emprego, a quem se candidatou à linha específica Covid-19 de apoio às empresas, criar medidas que apoiem o tecido empresarial regional, e como é natural, reforçar o sistema de saúde, para que este possa responder à situação atual.

No âmbito mais alargado, deve analisar e resolver os problemas do sistema empresarial público, e aplicar uma baixa nos impostos pagos pelos contribuintes e pelas empresas na região, porque esta é uma via de revitalização da economia, indo de encontro às pretensões da Federação Agrícola dos Açores, da Câmara de Comércio e Indústria dos Açores e da União Geral de Trabalhadores dos Açores.

 A aplicação na região do plano de recuperação e resiliência deve ser feita duma forma criteriosa, pelo que o governo deve reunir-se com os parceiros sociais e com a banca para decidir como se vão aplicar estes fundos europeus na Região.

O quadro financeiro plurianual 2021-2027 também deve ser devidamente valorizado, tal como o regime transitório entre quadros comunitários de apoio, que se devem revelar fundamentais no apoio ao investimento no arquipélago.

Independentemente das medidas a adotar, o governo tem de ser capaz de transmitir confiança aos Açorianos porque é fundamental que a população acredite nos seus governantes, de forma a ultrapassar os períodos difíceis, como é o atual.

- Quais as medidas mais urgentes que devem ser adoptadas no sector agrícola, perspectivando-se os milhões que vão ser transferidos da União Europeia para os Açores?

J. R. - O setor agrícola é fundamental no equilíbrio socioeconómico regional e necessita ser encarado como tal, já que as suas repercussões em todas ilhas, torna-o insubstituível.

A crise está instalada e existem compromissos assumidos pelo governo anterior que devem ser cumpridos, nomeadamente, a ajuda de 45 euros por vaca leiteira, que vem minimizar os prejuízos dos produtores de leite no período da pandemia, em que a indústria desceu o preço de leite, sem justificação sustentada.

A forma de aplicação dos 30 milhões de euros para a Agricultura Açoriana, incluídos no fundo europeu de recuperação e resiliência deve ser delineada o quanto antes. Embora estas verbas sejam insuficientes para fazer face às necessidades, é imprescindível que cheguem rapidamente ao setor agrícola, de forma a minimizar os efeitos da pandemia do covid-19. A aplicação eficiente das verbas afetas ao regime transitório, incluídas no quadro financeiro plurianual, também têm de ser analisadas pormenorizadamente com a Federação Agricola dos Açores.

Igualmente, deve ter um particular empenho do governo regional, na defesa das dotações financeiras do Posei para o período 2021-27, que é um fundo comunitário essencial à agricultura dos Açores e que constitui mais uma via de apoio à agricultura regional, devido ao seu caracter transversal, que vai desde as produções animais às vegetais.

É evidente que existem outras reivindicações que nos preocupam como as elevadas contribuições para a segurança social, o pagamento por conta, os transportes, apoios dirigidos para a produção, infraestruturas agrícolas, formação profissional, rejuvenescimento do setor e a necessidade de apoios para a comercialização, capazes de permitir a valorização dos produtos nos mercados de forma a melhorar o rendimento dos agricultores.

O governo terá de agir rapidamente, para que as grandes preocupações dos agricultores sejam devidamente atendidas porque precisamos de medidas rápidas e práticas, que revitalizem o setor.

- É importante repensar a economia devolvendo ao sector agrícola açoriano a importância que tem como seu principal pilar?

J. R. - A pandemia veio engrandecer a atividade agrícola na região já que os agricultores não recorreram ao lay off, não onerando por esta via, o estado, pelo que nunca pararam e, foram e serão sempre, os responsáveis pelo abastecimento alimentar dos cidadãos. A Agricultura continua a ser a principal atividade económica na região, pela sua influência na balança comercial, atendendo aos seus efeitos nas exportações, onde a fileira do leite é a principal vertente, secundada pela fileira da carne, enquanto o crescimento que tem ocorrido no setor hortofrutícola, vinha, chá, agricultura biológica ou floresta, ajuda à diminuição das importações na área alimentar.

Estes são factos inegáveis e que ninguém contesta e mais uma vez se provou, a importância da agricultura na região, já que mesmo em períodos de crise como atual, se não fosse a capacidade de resistência e resiliência dos agricultores, a economia regional encontrar-se-ia em piores condições do que as atuais.

De qualquer forma, temos de fazer uma avaliação do setor agrícola e identificar o que de bom foi feito, para podermos fazer mais e melhor, já que existem vertentes que necessariamente não correram bem, nomeadamente, nas estratégias delineadas pelo governo anterior para o setor leiteiro, que resultou num dos mais baixos preços de leite pagos aos produtores da Europa. 

Os Açores têm de apostar na qualidade dos produtos, e criar condições para a nossa afirmação nos mercados, porque isso leva à fixação das pessoas nos meios rurais, evitando-se a sua desertificação.

A sociedade tende a alterar-se ao longo do tempo, existindo diferentes mutações que influenciam a população, mas a agricultura está no ADN dos Açorianos, por isso, este será sempre um dos principais setores da região.

- Quais as medidas adoptadas no sector agrícola que devem ser repensadas?

J. R. - O funcionamento da secretaria da agricultura deve ser reestruturado de forma a ser mais ágil, permitindo ir de encontro às necessidades dos agricultores.

O governo deve ser cumpridor dos seus compromissos com os agricultores por isso, é necessário criar um calendário indicativo dos pagamentos regionais, tal como já existe, nos pagamentos da União Europeia feitos pelo IFAP.

As organizações de produtores são fundamentais na adoção das políticas agrícolas e devem ser ouvidas atentamente nas reivindicações que transmitem, porque aí, estão expostas as grandes preocupações do setor.

A estratégia da fileira do leite tem de ser repensada de forma a termos uma fileira moderna, capaz de alterar o facto da região, ter um dos mais baixos preços de leite pagos aos produtores da Europa. Aqui, claramente que não evoluímos nesta fileira e necessitamos duma visão integradora que permita valorizar a excelência da matéria prima entregue nas indústrias de leite.

 Os produtores têm feito um trabalho extraordinário nas suas explorações, que se constata nos dados oficiais, onde a qualidade do leite entregue nas indústrias é reconhecida por todos. Precisamos, no entanto, duma indústria que pense mais além e seja capaz de se ajustar ao consumidor moderno e às novas tendências dos mercados. 

Para isso, a forma de financiamento de algumas indústrias deve ser analisada devidamente para não se cometerem os mesmos erros, que levou ao sobredimensionamento de algumas unidades de transformação existentes nalgumas ilhas. Não podemos também apostar em produtos lácteos que não gerem mais valias, pelo que, o investimento comunitário deve ser cada vez mais criterioso.

Desta forma, o próximo quadro comunitário plurianual terá um papel decisivo na próxima década, pelo que deve ser bem aplicado. Não teremos muitas mais oportunidades para definir estratégias que sejam capazes de dar sustentabilidade à agricultura na região. Os novos desígnios das alterações climáticas estão aí e todos os setores têm de se adaptar a esta preocupação e a esta nova realidade. A agricultura dos Açores leva uma enorme vantagem nesta área, porque produz com qualidade, respeitando as regras ambientais e bem estar animal, mas temos sempre de melhorar e irmos de encontro aos grandes objetivos na nova Politica Agrícola Comum que ai vem, nomeadamente, nas condições previstas na estratégia do prado ao prato e da biodiversidade 2030.

É fundamental que a região defenda no Plano Estratégico da Política Agrícola Comum (PEPAC) os objetivos dos Açores.

- Para si como Presidente da Federação Agrícola, que retrato faz hoje do sector leiteiro na Região e que evolução prevê para a próxima década?

J. R. - O setor leiteiro com todas as suas ineficiências existentes, continua a ser o principal pilar da economia regional pelas implicações que tem na sociedade, que se repercute a vários níveis, como no próprio emprego, já que a existência de indústrias de lacticínios, de empresas de serviços, da própria banca até aos funcionários dos serviços oficiais, se deve em muito, à fileira do leite e obviamente à agricultura no seu todo.

Não nos podemos esquecer que a região expede cerca de 300 milhões de euros em produtos lácteos para o exterior, o que é um contributo decisivo para a balança comercial dos Açores e produz cerca de 34% da produção de leite nacional e é responsável por 50% da produção nacional de queijo. Esta capacidade de gerar bens transacionáveis que a fileira do leite tem, é fundamental para a nossa região, mas a existência duma dupla insularidade, traz dificuldades acrescidas devido aos custos e constrangimentos dos transportes marítimos.

A produção tem feito o seu trabalho, verificando-se que as explorações agropecuárias têm se modernizado e aperfeiçoado, através do melhoramento genético ou do maneio alimentar. A existência de infraestruturas agrícolas em condições também tem contribuído para a melhoria do rendimento dos agricultores. No entanto, ainda existe um longo caminho a percorrer na construção, beneficiação e manutenção das infraestruturas, pelo que é preciso continuar a investir não só nos perímetros agrários, mas em toda a ilha, porque esta é uma forma de reduzir as assimetrias que ocorrem nas próprias ilhas. 

No âmbito das preocupações das alterações climáticas, não nos devemos esquecer o contributo da agropecuária para a retenção do carbono através das pastagens e da floresta.

Por todas estas razões, pode haver futuro para a fileira do leite, mas para que tal aconteça, alguma indústria tem de mudar a sua postura e ser capaz de valorizar a excelência da matéria prima - o leite, que lhes é entregue pelos produtores. A falta de valorização do nosso leite tem sido uma preocupação da Federação Agrícola dos Açores ao longo dos anos e, creio que é hoje uma realidade entendida pela própria sociedade. Precisamos de empresas e cooperativas arrojadas que procurem insistentemente novos produtos e novos mercados capazes de valorizar a qualidade do nosso leite.

Temos uma fileira de leite com condições para ser competitiva nos mercados e a indústria tem de aproveitar a forma sustentada como se produz na região e assim, ir de encontro às transformações que vão ocorrendo nos mercados, em virtude das mudanças do comportamento dos consumidores que vão evoluindo e alterando-se.

No setor hortofrutícola faltam dados estatísticos das importações para que a planificação da produção possa ser mais eficaz.

A produção tem feito o seu trabalho e continuará a aperfeiçoar-se porque só desta forma é que poderemos ser competitivos, mas todos devemos caminhar para o fortalecimento desta fileira, porque não podemos matar a galinha de ovos de ouro da região.